Zorro desmascarado
Embora um tanto diferente do herói da ficção, o famoso cavaleiro existiu em carne e osso: era umirlandês, de pele clara e barba ruiva, que morreucondenado pela Inquisição católica.
Uma coisa todo mundo sabe: Zorro sempre foi um sujeito de duas
caras. O que ninguém – ou pouca gente – sabe é que ele escondeu por
todos esses anos uma terceira faceta. Por trás das proezas do herói da
ficção está a biografia de um herói de carne e osso. Sim, o Zorro
existiu. Não era mexicano, mas irlandês. Não tinha os traços latinos do
Antonio Banderas, que estrela A Lenda de Zorro, com estréia prevista
para 28 de outubro, mas pele muito clara, barba e cabelos ruivos. Seu
nome de batismo era William Lamport. E seu pseudônimo, Guillén Lombardo.
O Zorro da vida real nasceu em 1615, na cidade portuária de Wexford,
sudeste da Irlanda. Morreu em 1659, na Cidade do México, então capital
da Nova Espanha, condenado pela Inquisição. Em apenas 44 anos, no
entanto, protagonizou um roteiro de aventuras que não poderia ter tido
outro destino senão Hollywood. E, claro, o imaginário de crianças e
adolescentes desde 1920, quando o galã Douglas Fairbanks surgiu nas
telas em A Marca do Zorro, um dos maiores clássicos do cinema mudo.
Nosso personagem veio ao mundo em um berço de heróis. Desde o século
16, a agrária Irlanda vivia em pé de guerra contra a poderosa
Inglaterra, que queria converter os católicos daquela ilha ao
protestantismo. O cerco à cidade irlandesa de Kinsale, ocorrido durante o
reinado de Elizabeth I, foi um marco da batalha religiosa. Era o ano de
1601 e os rebeldes locais receberam ajuda da católica Espanha para a
resistência: o rei Felipe III mandou para a ilha um contingente de 6 mil
homens, armas e munição. O monarca esperava que a luta contra os
ingleses na Irlanda desviasse a atenção e as forças da Grã Bretanha para
fora da Holanda, que se encontrava sob domínio espanhol. O desembarque
das tropas cristãs aconteceu no mês de outubro. Parte da frota que
transportava munição não chegou ao destino, prejudicando os combatentes.
Os reforços não adiantaram e, sitiada pelos ingleses, a cidade acabou
se rendendo em 1603. Só que o ódio irlandês aos inimigos permaneceu e
atravessou gerações. Como muitas outras famílias, os Lamport, donos de
muitas terras e católicos fervorosos, estiveram lá, em Kinsale, para
lutar ao lado dos espanhóis.
O mais novo integrante do clã dos Lamport, William, já nasceu sob o
jugo inglês, 12 anos após a rendição dos irlandeses cristãos. Depois de
alfabetizado, o menino deixou a pacata Wexford rumo à capital Dublin
para estudar. Passou pelas mais prestigiadas escolas da cidade e
aprendeu latim e retórica com os jesuítas. Aos 12 anos de idade, em
1627, desembarcou em Londres, com a missão de completar sua educação,
estudando grego e matemática. Um ano depois, no entanto, o caçula dos
Lamport foi condenado à prisão por traição à Coroa britânica. O jovem
William tinha escrito um panfleto – em latim, diga-se – rebelando-se
contra os mandos e desmandos do governo inglês sobre a Irlanda. Depois
de uma misteriosa fuga, foi capturado por piratas e passou a viver e a
trabalhar com os ladrões dos mares, atacando, principalmente, navios
ingleses. Sua vida na pirataria duraria dois anos. Em 1629, William,
então com 14 anos, envolveu-se em sua primeira guerra. Durante o
Renascimento, a cidade de La Rochele, no oeste da atual França, havia
começado a encampar os ideais religiosos reformistas até se tornar um
importante centro para a igreja protestante francesa e seus membros, os
chamados huguenotes. Foi contra eles que o jovem William lutou,
combatendo ao lado dos franceses para acabar com o domínio dos
protestantes sobre aquela cidade, que era um dos principais portos da
Europa. Quando o rei católico Luís XIII resolveu acabar com a farra
herege, La Rochelle foi isolada por trincheiras de 12 quilômetros de
extensão. William abraçou a causa. E a cidade resistiu por apenas 14
meses.
Com La Rochele de joelhos, o rebelde irlandês dedicou-se a outra
causa. Alistou-se nas brigadas da Irlanda e mudou de lado: desta vez,
lutou contra a França, pela Espanha. Terminado o conflito, ele decidiu
estudar filosofia em Santiago de Compostela, na Galícia. Depois, migrou
para o tradicional monastério El Escorial, a 45 quilômetros de Madri,
onde mergulhou na teologia. E, com 25 anos, em 1640, depois de percorrer
todo o continente europeu, aprender 14 idiomas e encarar várias
guerras, William voltou para a Espanha e resolveu que fincaria suas
raízes ali mesmo. Mudou seu nome para Guillén Lombardo e foi agraciado
com uma bolsa para ingressar no Colégio Imperial de Madri. A essa
altura, o errante irlandês já era conhecido por suas bravatas e caiu nas
graças de Gaspar de Guzmán y Pimentel, o conde-duque de Olivares, um
dos homens mais importantes de toda a Espanha, braço direito do rei
Felipe IV. Nessa época, Lombardo também já ensaiava os primeiros passos
para tornar-se El Zorro: dominava a espada com a mesma habilidade com
que arrebanhava corações. Sua vítima mais conhecida nessa época foi Ana
de Leiva, uma nobre da corte espanhola.
Hasta la vista, baby
O caso do irlandês errante com a rica espanhola terminou no exílio de
Lombardo na Nova Espanha, atual México. Como a família dela não aceitou
o romance e exigiu a punição severa do forasteiro, Guzmán y Pimentel
arrumou um jeito de livrar a cara – e o pescoço – do amigo: propôs a
Lombardo um emprego do outro lado do Atlântico. Ele atuaria como espião,
a serviço do conde-duque, entre as tribos indígenas que ainda dominavam
o novo mundo. Assim que desembarcou na América, o irlandês assumiu seu
posto – e sua dupla personalidade. Era, ao mesmo tempo, um pacato
professor de latim que namorava a nobre Antonia Turcio e um freqüentador
dos proibidos rituais de feitiçaria dos índios. O europeu virou, assim,
um aprendiz de bruxo. E, em meio à vida agitada, ainda arrumava tempo
para visitar as camas das mais bonitas e cobiçadas damas da Nova
Espanha. Só que Lombardo acabou envolvendo-se mais do que devia com os
índios. Começou a defender ideais mal vistos pela coroa espanhola, como a
reforma agrária e o fim da escravidão. E, em pouco tempo, tornou-se
líder de um embrionário movimento pela independência do México.
Dois anos depois de se instalar na América e abraçar a causa
indígena, o irlandês, que havia lutado em defesa da Igreja Católica na
Europa, acabou condenado pela Inquisição. Em 1642, aos 27 anos, ele foi
preso sob as acusações de trair a Coroa espanhola, de planejar um
levante popular, de envolver-se com bruxaria e, claro, de heresia.
Lombardo amargou oito anos na cadeia. Na noite de Natal de 1650, no
entanto, elaborou uma fuga tão fantástica que espalhou-se o boato de que
ele tinha pacto com o diabo. Com 35 anos, o aventureiro virou, então,
El Zorro, que, em espanhol, quer dizer raposa – ou, no sentido figurado,
homem astuto. O apelido popular serviu como uma luva para o novo
Lombardo. Exatamente como o personagem que inspirou mais de dois séculos
depois, ele tornou-se um cavaleiro, que, como um fantasma da noite,
vagava pelas cidades, fazendo justiça com as próprias mãos. Zorro
zombava dos soldados e distribuía folhetos pregando contra a Inquisição.
Nos textos que escrevia, denunciava as atrocidades daquele que se
intitulava o Tribunal do Santo Ofício.
Mais uma vez, porém, Lombardo caiu do cavalo derrubado pelo seu ponto
fraco: as mulheres. Em 1652, ele foi surpreendido na cama da mulher do
vice-rei, don López Díaz de Armendáriz. A Inquisição novamente o
prendeu. E, desta vez, o já legendário Zorro queimaria no “fogo que
purifica”. A execução seria cumprida no dia 10 de novembro de 1659, sete
anos depois da prisão. O dia marcado para o espetáculo público
amanheceu chuvoso. Na Plaza Mayor, Cidade do México, a multidão
acotovelava-se. Os carrascos conduziram Lombardo amarrado, montado no
lombo de uma mula. O cortejo seguiu pela rua até chegar ao destino: o
convento de San Diego, onde os inquisidores mantinham o quemadero. A
fogueira já estava acesa, mas El Zorro não podia ter um fim tão banal.
Como se estivesse em um filme, ele agarrou as cordas que o penduravam
sobre a fogueira e se enforcou. Uma vez mais, El Zorro zombou de seus
inimigos. E virou mito naquelas bandas. Sua luta não foi em vão.
Lombardo entrou para a história do México como o precursor da batalha
pela proclamação da independência. A Columna de la Independencia, na
Cidade do México, tem um mausoléu para os heróis nacionais. No vestíbulo
que dá acesso ao memorial, repousa um busto dedicado à memória do herói
irlandês.
As pegadas do herói
Livro escrito dois séculos depois damorte de William Lamport foi a base para a criação do personagem mascarado
Em 1872, dois séculos após a morte de William Lamport, na Cidade do
México, o general do Exército Vicente Riva Palacio (1832-1896) escreveu o
livro Memórias de um Impostor: Guillén de Lampart, Rey de Mexico, em
que conta as aventuras do forasteiro europeu nas terras mexicanas. No
romance, baseado em vasto material biográfico encontrado nos arquivos da
Inquisição, Lamport ganhou uma alcunha bem ao gosto local: Diego de La
Vega. O romance não ficou famoso – e nem atravessou os séculos. Mas,
segundo o professor Fábio Troncarelli, da Universidade de Viterbo, na
Itália, autor dos livros La Spada e La Croce (“A Espada e a Cruz”) e The
Man Behind the Mask of Zorro: William Lamport of Wexford (“O Homem
atrás da Máscara do Zorro: William Lamport de Wexford”), inéditos no
Brasil, a obra do general serviu para a construção do herói mascarado. O
Zorro surgiu em cena pela primeira vez em 1919 na série The Curse of
Capistrano (“A Maldição de Capistrano”), escrita pelo jornalista e
romancista americano Johnston McCulley e publicada no semanário
americano All-Story Weekly. Em 1920, o herói ganhou as telas de cinema,
no filme A Marca do Zorro, estrelado por Douglas Fairbanks. Em 1940, o
ator Tyrone Power protagonizou a segunda versão de A Marca do Zorro. E,
em 1958, a Disney lançou a série de TV mais famosa do personagem, com
Guy Williams no papel principal. Em 1998, foi lançado A Máscara do
Zorro, com Antonio Banderas e Anthony Hopkins. E, em outubro, estréia A
Lenda de Zorro, com Banderas e Catherine Zeta-Jones. Na ficção, o jovem
hispânico rebela-se contra a tirania do governo dos Estados Unidos, que
acabara de anexar o território californiano, e passa a lutar pela
liberdade da Califórnia, usando uma máscara para esconder a sua
verdadeira identidade.
Saiba mais
Livros
The Irish Zorro – The Extraordinary Adventures of William Lamport (1615-1659), Gerard Ronan, Mount Eagle Publications, 2004Reconstrução da vida de William Lamport, de sua infância à morte na fogueira, com detalhada contextualização histórica.
La Spada e la Croce – Guillén Lombardo e l·inquisizione in Messico, Fabio Troncarelli, Edizioni Salerno, 1999
Biografia detalhada de William Lamport com base em vasta pesquisa feita nos arquivos da Inquisição em Dublin, Madri, Vaticano e Cidade do México. O autor é professor de história e paleografia latina da Universidade de Viterbo, Itália.
Fonte: Vi aqui.